Pegando O Costume
- Hélio Silva

- 9 de nov.
- 6 min de leitura
Por Hélio Silva, 09/11/2025 às 08:00

– José! Maria! Achei um pé de manga lá na rua da Foice!
Era a voz de Antônio quem vinha bradando a novidade. Os dois colegas saíram do portão de Maria e foram se aproximar do que chegava. Curiosos, perguntaram o que ele tinha ido fazer que vinha de tão longe.
– Ora, eu gosto de bater perna por aí.
– Mas lá é muito longe
– Maria respondeu, endireitando o boné que gostava de usar. O boné era de José, mas ele não fazia caso de ficar usando e deixava sempre com a amiga.
Foi para José que os outros dois olharam, na busca de uma opinião capaz de fazer um meio termo entre os discordantes.
– Realmente, meu pai não gosta que eu ande para aquele lado. Diz que é perigoso – ele disse em tom grave, mas seus olhos estavam bem abertos, como quem está pensando demais para poder enxergar.
Antônio sabia que José estava pensando era nas mangas:
– Olha o sol que está fazendo! Imagina uma manguinha fresquinha, agora, hein?
Sem conhecer filosofia, o corpo de José reagiu sozinho e, ao lamber os beiços, comprovou a tese dos santos: o corpo é a porta da corrupção. Maria, que não era dada a estas sutilezas, achava melhor não correr o risco de uma aventura das boas só por causa de umas mangas, que ela nem gostava tanto assim... Não é mesmo?
Ela foi a última a se juntar aos outros dois, mas não por muito. Ajeitou o boné para dar coragem e seguiu em frente, ouvindo a conversa adiante:
– Essa é da docinha, Antônio?
– É sim! Da boa!
– E por que você não trouxe?
– Porque você que gosta mais, ora!
– Mas aí você trazia pra mim.
– É que os cachorros dificultam...
Não adiantou Antônio dizer isto baixinho. A reação amedrontada foi imediata:
– CACHORROS?!
A marca na panturrilha direita de José não mentia: ele tinha motivos para ter medo. Apontou para a marca na perna da mordida de tempos atrás.
– Você já até se recuperou
– Antônio fez objeção. E, dessa vez, foi Maria quem concordou:
– Já faz muito tempo isso! Opa! Boa tarde, dona Mercedes!
Passavam na porta daquela senhora. Ela estava sentada em sua cadeira de balanço, parada exatamente na porta de sua pequena casa. Quem quisesse passar, teria de levantá-la, mas isto, para ela, era menos importante que o fuxico na vida dos vizinhos.
– Pra onde vocês estão indo a essa hora da tarde?
Quatro perninhas pararam imediatamente diante da pergunta, exceto a de Antônio, que ainda deu mais alguns passos. Filho de pais que não estavam em casa, ele não costumava se importar muito com a observação que os vizinhos faziam. “Até parece que meus pais vão ficar sabendo onde eu fui”, ele sempre pensava a mesma coisa.
– A gente vai pro campinho do Tetê – a resposta veio justo de José, o reclamão de segundos atrás. Ele sabia que, se dona Mercedes estava observando-os, seu destino já estava traçado. Ela contaria tudo e o castigo seria certo. E, se nos filmes, até os prisioneiros tinham direito a um último pedido, por que ele não podia ter direito a algumas mangas?
O trio despediu-se, seguiu adiante e a folgada senhora balançou sua cadeira com um sorriso no rosto. O garoto nem para lembrar que o campinho do Tetê era para o outro lado. Ai, ai...
Orgulhosa consigo mesma ela riu, como se de tudo soubesse.
Mas nem se tivessem a onisciência de dona Mercedes, José e Maria conseguiriam adivinhar que era daquilo que Antônio falava:
– Então, AQUELES são os cachorros?! – Maria perguntou, assustada com a vista lá adiante.
– Fique tranquila que eles não mordem.
José não dizia nada. Apenas se escondia atrás do muro de uma casa de esquina. Recusava-se a sair daquele lugar confortável antes que os dois trouxessem notícia. Assim que eles voltaram, trouxeram o dilema para o amedrontado:
– Eu acho que a gente não deveria ir lá – Maria foi direto ao ponto e explicou:
– Os bichos são enormes, se a gente chegar perto, eles vão morder a gente.
– Que nada – Antônio exclamou, tentando manter viva a aventura da tarde – É só a gente ir com jeito! Esses bichos não são de nada!
Novamente, cabia a José a resolução. Tão pequeno, já sentia o poder da espada de Dâmocles – coisa que o garoto só conheceria no Ensino Médio. Entretanto, ao contrário do personagem da anedota, José era real. E não sabia desistir.
Virou-se sem falar nada e, de um só respiro, seguiu pela rua. Encarou os cães lá adiante e sentiu seu corpo se dividir entre as pernas da coragem e os braços do recuo.
Andou para frente, apenas pelo medo de ter medo e chamou atenção dos cães de rua lá adiante. Imaginou, logo, a força que teria outra dentada e sua mente se ocupou disso, enquanto os companheiros se moviam pelos flancos.
Os cães demoraram um pouco para perceber o inimigo que vinha em sua direção, mas logo começaram a latir. Não queriam perder a boa sombra sob a mangueira. Num calor daqueles, era o cúmulo vir gentalha atrapalhar!
Latiram com mais força e, como as mirradas pernas adversárias não paravam de seguir caminho, eles passaram para o rosnado. Poderiam ser mais pacíficos, se fosse dada opção de descanso, mas aquilo claramente era declaração de guerra!
Contra este fato, se põe outro: o de que o ser humano é ardiloso, em especial com adversários cansados. Desatentos, os cães mal puderam dar alguns passos na direção do garoto e surgiram duas pedradas dos flancos.
O líder da matilha, um beagle puro (que justamente, por sua pureza, conseguira a liderança entre os outros do bando, muito maiores), era sujeito afobado, reizinho de primeira viagem, e quis dar ordens para que os ataques se dirigissem aos dois lados, lá para o meio do mato, nos terrenos baldios. Eles deveriam estar atacando por ali. Mas, desde os ideais da velha Europa, a humanidade provou que tolas ideias de “melhor raça” sempre são solapadas por uma estratégia coerente.
Mais uma saraivada de pedras veio e alguns dos vira-latas mais experientes foram os primeiros a dar no pé. O bonezinho preto da esquerda e o cabelo ruivo da direita eram claramente inimigos, o beagle percebia. Tentou manter sua tropa unida:
– Au, au! Au! – ele disse, para encorajá-los. Mas eles se moviam patinha pra cá, patinha pra lá, sem saber para onde direcionar o ataque, enquanto as pedras vinham numa saraivada.
O líder ainda tentou brados mais veementes, todavia, bastou olhar para o lado para notar, pela deserção dos outros, que cada um tem a Waterloo que merece.
Sozinho, fugiu com o rabo entre as pernas, rumo a um destino menos desonroso que o do antigo imperador francês. Talvez conseguisse reconstituir seu reinado – embora precisasse, primeiro, recuperar-se das pedradas no bumbum.
Percebendo a vitória, Maria e Antônio imediatamente saíram de trás de seus esconderijos. Correram para pular em volta do amigo, mostrar sua alegria diante da coragem de José. Mas o pequeno estava tenso demais e precisava extravasar um pouco de todo aquele medo que tinha dentro de si.
Chorou, chorou feito bebê sem banho. Recebeu o abraço de Maria:
– Não fica, assim! Você foi bem, hoje!
E logo Antônio veio, com os braços cheios de mangas e as distribuiu. Vangloriava-se do feito dos amigos:
– Deixa de choro José! A gente pegou está cheio de manga! Isso aqui é vida! A gente está rico!
E Antônio jogou algumas mangas para o alto, num espasmo de euforia.
Hoje, já adulto, José se lembra daquele dia, enquanto observa a mangueira que, do quintal do vizinho, passa o muro dos fundos e se estende até o quintal de sua casa. De sua cadeira de balanço, ele comenta com a amiga de longa data:
– É... Essa mangueira me lembra do Antônio.
– Pois é... – Maria concorda, enquanto, da cadeira ao lado, abraça a filhota. A pequenina, usa um bonezinho rosa, que lhe encobre apenas parte da grande cabeleira loira. Ao ouvir o grito das outras crianças no jardim da frente, ela corre para ir brincar. Maria, preocupada, adverte: – Vê se não vai pra muito longe, hein, menina!
A dona do bonezinho corre sem nem dar ouvidos à mãe. Coisa de criança, que não sabe conter os próprios instintos.
– Está tudo bem. Minha esposa fica de olho neles – José tenta tranquilizar a amiga.
Maria ainda olha a corrida da filha por alguns instantes, mas sua mente logo sai do presente e retorna para a lembrança de Antônio:
– E hoje ele poderia estar aqui com a gente, se não tivesse escolhido aquela vida...
– Sim, sim... O destino tem dessas coisas – José diz, levantando-se.
Desvia da churrasqueira e vai pegar uma manga. Enquanto estende a mão, ouve os latidos do cachorro, que, vendo a figura do dono por cima do portãozinho, levanta-se e chama para receber carinho. Um pequenino beagle, tão fofo quanto orelhudo.
José faz-lhe um carinho e recebe, com riso, aqueles inofensivos simulacros de mordida. A amiga, vendo a cena, questiona:
– Perdeu o medo, é?
– Ah, um dia a gente tem que pegar o costume.
Os dois riram. Uma risada leve e tranquila, feito as folhagens tropicais sob o sol de primavera.
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