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Trinta Sacolas

Atualizado: 3 de set.

Por Hélio Silva, 03/09/2025 às 20:00


homem com carrinho de supermercado cheio

A fila estava cheia de gente. Fazia um calor dos diabos e Ernesto ofegava, abanando-se com sua camisa longa e suada. Uma mão balançava a camisa, outra manobrava o carrinho no espaço estreito. Apesar da confusão de gente passando, os últimos anos tinham dado certa experiência a Ernesto nestas situações.


Experiência e peso.


Ele pegou o celular e viu a vida maravilhosa de seus "amigos". Corpos esculturais em praias paradisíacas, loiras sorridentes com taças brilhantes... Gente que não sabia aproveitar uma boa promoção de alcatra ou não precisava se preocupar com promoções do tipo. Gente que tinha dinheiro suficiente para não se preocupar e seguir em frente. 


A fila andou e o inferno começou quando uma pontada atingiu o lado esquerdo de Ernesto. Justo agora, que havia apenas uma pessoa em sua frente. A dor se intensificou, como se materializasse o pessimismo. Ele tentou se manter ereto, mas não conseguiu. Guardou o celular no bolso da bermuda, sem poder desligar a tela e entortou-se um pouco. 


– Você está bem, moço?

– Sim, senhora, tudo certo.


Era uma senhora com carinha de coruja, camisa "Exército de Jesus" e saia jeans. Ernesto desejou estar numa praia bonita. Se tivesse uma vista dessa, mesmo a dor deveria ser melhor, não deveria?


Não. Ele se virou para a frente, balançou a cabeça, para si mesmo. Não poderia se deixar abalar. Tinha um bom emprego, ganhava bem. Não era o suficiente para viagens, mas ele estava bem, a dor já estava até passando. Ele conseguia...


– Próximo!


A pontada veio de novo. Agora, com mais força. Que droga. Precisava de espaço, desviou-se para o lado, esbarrou num cara:

– Desculpa, senhor...

– Tranquilo. Quer ajuda aí?

– Não precisa, tudo certo.


Ernesto precisava provar algo para si mesmo. Arrastou o carrinho, deu boa tarde para a caixa e foi pondo os itens. Os primeiros foram as peças de carne bovina. Todo mundo olhava. Estariam pensando que era para um churrasco? Não, é claro que estariam pensando que era para ele.


– Sacola?


Ele soltou um gemido de dor, tentando manter a postura.  


– Sacola?

– Não, eu trouxe a minha...

Olhou no carrinho. Não estava lá. Droga...


– É... pensando melhor, me vê algumas sacolas, por favor.

– Quantas?


Ele pensou em dizer "umas trinta", mas sabia que esse tipo de coisa era bem regulada. Ernesto tinha trabalhado em mercado. Tinha trabalhado num monte de coisas. Nos tempos de pedreiro, sua mente estaria mais ativa, jamais esqueceria uma sacola boba assim. É impressionante como a juventude é fácil de morrer.


– Senhor?

– Acho que umas dez, por favor.

– Talvez mais, não?

– É, talvez mais...


Ele suava, agora, de apreensão. Conseguiria caminhar com aquilo tudo até a saída do mercado? Era logo ali. Ele tinha que conseguir. 


Manteve a postura da melhor forma que pode. Segurou a respiração e foi ensacando. Uma outra funcionária apareceu para ajudar a guardar tudo. As carnes passaram, depois os condimentos, então os molhos, daí os itens de higiene e, enfim, os de limpeza. As sacolas farfalhavam e Ernesto estendeu o cartão, um pouco assustado com o preço das coisas. Mesmo ele, que, agora, trabalhava como programador para ganhar em dólar, ainda tinha esses arrepios. O salário cobria a inflação, mas nunca cobria a vida. 


Transação aprovada, ele pôde retirar o cartão. E o caminho ficou difícil. Ele envergava-se cada vez mais. 


– Tudo certo aí, irmão?


Um casal bonito. Um rapaz forte, uma moça loira, lindíssima, como se tivesse acabado de pular para fora do celular. Era o rapaz que lançava a pergunta. Ernesto pensou em pedir ajuda, mas cortou a cogitação. Ainda tinha algo que ele queria.


– Ah, não. Tudo bem, irmão. Vou só parar aqui mesmo.


Encostou-se à parede. Puxou o celular, para chamar um carro pelo aplicativo... Droga! Tinha reagido ao story da loira. A porcaria de um foguinho. Merda... Maldito toque fantasma. Malditos cabelos loiros. Malditas praias. 


O motorista não demorou a chegar. Apenas alguns minutos, segundo o aplicativo informava. Tinha parecido uma eternidade. Ernesto conseguiu se levantar, empurrar o carrinho pelo pátio. Já via o carro. Logo ali. Apenas alguns metros. Ele conseguiria. Mas... Caramba, o que era isso nas costas? Parecia estar começando a se mover, pra lá, pra cá.


E o barulho saiu. 


Ernesto arregalou os olhos. Sentiu um grama de alívio com a saída, mas uma tonelada de vergonha com a risada dos garotos. Eram os dois moleques de sempre, no pátio, que vinham oferecer ajuda para carregar as bolsas a preço de alguns trocados. Eles deveriam estar vindo em sua direção, Ernesto pensou. Porém, já se afastavam e, rindo, iam prestar ajuda a outras pessoas. 


Ernesto não acreditava em milagres. Porém, sua dor tinha passado como num estalo mágico. O cheiro que subia, entretanto, fez ele ter um motivo a menos para acreditar nestas bobagens. Se recusava a ser uma sacola na mão duma entidade invisível e brincalhona.


Enfiou as compras no carro e sentou no banco de trás. Recostou a cabeça, fechou os olhos. No fundo, nem ele sabia o que queria tanto provar. Mas sabia que não tinha conseguido.

2 comentários


Parabéns Hélio. História muito forte.

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Olá, Valteria! Muito obrigado por apreciar este trabalho! Se quiser mais, basta acompanhar @pena_emchamas nas redes sociais.

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