Pequenos Altares
- Hélio Silva

- 23 de set.
- 8 min de leitura
Por Hélio Silva, 23/09/2025 às 10:30

Estou feliz por não ter feito meu trabalho naquele dia.
Eu, que estava cansado de entrevistas, deveria ter feito mais uma – desta vez, um reencontro com uma de minhas artistas favoritas, Elisa Lótus. Coube a mim cobrir o encerramento de sua carreira, planejado sob medida para fugir dos grandes festivais e estádios.
Mas, nesta ocasião, ao contrário dos outros dois momentos em que me deparei com aquela incrível cantora, houve apenas conversa, sem amarras profissionais. E foi algo tão íntimo que eu me sentiria mal se expusesse isto aos holofotes da imprensa.
Ainda mais se tratando de uma pessoa tão misteriosa quanto Elisa – sobre quem, quanto mais me aprofundo, menos conheço.
Inventei, depois, uma matéria sobre o show e pedi um tempo. Cobri o encerramento de uma carreira na música e dei uma pausa em minha trilha nas entrevistas. Rumo a novas jornadas, a vida de um novo homem.
Todavia, anoto aqui, só para mim, algumas coisas que vou querer lembrar daqui a algum tempo, quando eu estiver novamente perdido.
Fazia frio naquela tarde. O céu estava repleto de nuvens azuis e tudo era abraçado pela mesma coloração. Eu coloquei meu sobretudo preto e, pelo aplicativo, chamei um carro para me levar até o centro da cidade vizinha.
Descendo por entre os prédios, a neve se debruçava lentamente sobre as cabeças de touca. Todos, nas calçadas, passavam entre as luzes das lojas, os nativos correndo do frio, os turistas se alegrando com os flocos azulados.
Havia menos gente que o normal em algumas ruas. Decidi parar o táxi a algumas quadras do meu destino e ir caminhando contra o corredor de vento formado pelos grandes prédios. Eu lembro de ter sorrido, mesmo com as bochechas ligeiramente arranhadas pelo vento. Me animava a ideia de poder rever Elisa Lótus, ser desperto por sua voz calorosa. Ao vivo, sempre melhor que nos discos.
Grande foi minha surpresa quando cheguei ao aconchegante espaço e os assessores me receberam com um lugar especial nas cadeiras da frente.
– Arthur William? Já temos um lugar para você, a pedido de Elisa. Ali, senhor, na primeira fileira.
"A pedido de Elisa". Bem que ela se lembrava da promessa que tinha feito da última vez que eu a entrevistara, anos antes. Elisa Lótus tinha gostado tanto daquela oportunidade de expor seu trabalho, de falar de suas ideias, que disse que se lembraria de mim na próxima.
E ali estava eu no melhor espaço, preparado para vê-la entrar no palco acompanhada de um guitarrista e um baterista. Ela saudou o seleto público, fez um breve agradecimento por estarem todos presentes naquele fim de tarde tão especial. Voltou-se para seu microfone, ajudou a ajeitar alguns cabos.
Sob a luz amarela, não havia nada daquela megaestrutura de antes, nada daqueles estádios lotados, nada daquele monte de fotografias que mitificavam a "estrela da nova geração". Tudo era aparentemente mais simples. Mas apenas aparentemente. Bastava observar os lados para perceber que os olhares permaneciam atentos, como que ansiosos, sem piscar. Todos esperavam que ela soltasse a voz.
E, quando ela lançou a primeira nota, todo o mundo era aquele palco.
Neste momento, minhas dúvidas começaram a ganhar fôlego. Ouvindo aquele canto no qual cabiam três, quatro, até cinco vozes, fiquei meio perdido, tentando adivinhar onde terminava uma, onde começava outra. Meus sentidos se confundiram e senti as luzes amarelas como se fossem mãos a acariciar minha face.
Os pés de Elisa Lótus não tocavam a madeira do palco. Ela flutuava, controlando a gravidade com a leveza de seu canto. A guitarra e a bateria não conseguiam desafinar. Não podiam, nem se quisessem. Estavam sob o comando de sua maestrina, todos nós estávamos.
E o universo ficou um pouco mais dourado assim que ela atingiu a última nota. Ao descer de sua levitação, vieram os aplausos incrédulos daqueles que haviam estado diante de um milagre.
As coisas foram mais ou menos assim, ou eu imaginei que foram.
Entretanto, tenho certeza absoluta do que aconteceu depois, quando fui recebido no camarim de Elisa Lótus. Tal certeza não faz as coisas ficarem menos fantásticas. Pelo contrário: estar ali, naquele espaço para onde ela carregava as lembranças de suas vitórias, aquilo era algo excepcional – mas não exatamente pelos motivos que eu esperava.
Cumprimentei-a pela excelente apresentação e sentei-me diante de seus grandes olhos esmeraldinos. Apenas eu e ela na sala branca. Havia as poltronas, as prateleiras, os espelhos, o incenso de pêssego e os objetos da musa. Mas eu não podia tirar a vista dos olhos verdes. E também não podia fazer qualquer pergunta. Eu era incapaz.
Foi ela quem, sorrindo, puxou o assunto:
– Ora, ora... E aqui estamos novamente, não é?
Sua voz já não era a mesma do palco, mas uma onda suave e calma sob o entardecer. O efeito tranquilizador foi imediato sobre mim e eu pude esquecer um pouco a amarra de minha profissão:
– Sim! E eu gostaria muito de agradecer pela recepção hoje.
– Ah! Não foi nada. Aliás, eu precisava que você estivesse aqui neste dia.
– Uma ocasião especial, para a entrevista...
– Não pensei em entrevista hoje. Na verdade, preciso que você me ajude a encontrar uma resposta.
Neste momento, suas mãos tocavam o braço da poltrona dela, como se tentassem alcançar alguma outra coisa. Ela desistiu do movimento e me fez a estranha pergunta:
– Quando eu passar por aquela porta, o que você acha que eu vou ser?
Fiquei completamente desconcertado. O que eu deveria responder diante daquilo? Obviamente, deveria ser polido, mas, o tom de voz dela era sinuoso, agora. Feito um rio pedindo para ser desvendado por algum hábil pescador. Não por mim, eu pensei, e fui pelo caminho mais fácil:
– Será uma artista com um legado imortal!
Ela sorriu, realmente empolgada com a resposta. Comentou, batendo palmas:
– Era justamente o que eu queria ouvir! "Imortal"! Essa palavra é tudo o que eu queria ser, sabe? – Ah... Todos nós, creio eu.
– Não, não acho que vocês gostariam de ser "imortais". Seria ruim viver para sempre. Mas, para mim, isso tem um sentido diferente. Ao menos, embora seja um deles, você é um dos que me entende.
Neste momento, eu não tinha o que dizer. Tentei abrir a boca para entender aquele "vocês", mas logo a fechei, por ausência de palavras. Nada que eu perguntasse poderia deixar mais claro o que era aquela mulher. Apenas ergui uma sobrancelha e sorri com ela, interrogativo.
Elisa Lótus levantou-se, foi até a prateleira à sua esquerda. A fumaça do incenso desviou-se, para seguir o contorno de seu vestido branco, de estilo bordado.
Seus pés eram silenciosos e tranquilos, como se estivesse em casa. E, de certa forma, ela estava. Pôs as mãos sobre seus objetos e pegou um deles, com carinho. Era um desenho dela, feito em caneta esferográfica. Presente de uma fã bastante jovem:
– Ela disse que eu parecia com sua mãe – Elisa comentou, apontando a folha em minha direção – Não é curioso que ela tenha pensado nisso?
– Sim, e é um belo desenho!
– Muito bonito, muito carinhoso... – ela repôs o desenho sobre a prateleira. Pegou uma fita vermelha, com seu nome bordado em letras douradas – E isto eu ganhei quando fiz um show beneficente. Foi de uma família, que conseguiu passar por entre os seguranças e chegar até mim.
Lótus brincava com a fita em seus dedos, observando-a com o olhar brilhante, como quem vê algo pela primeira vez. Seus cabelos pretos acompanhavam o movimento das mãos, para lá e para cá nos ares e no vestido.
Ela parou um instante. Voltou-se para mim e me questionou:
– Mas, ainda bem que você descobriu a resposta para tudo isso... E como você descobriu, mesmo estando cansado para pensar ultimamente?
– Cansado?! – eu não pude esconder minha surpresa – Bem, está tão aparente assim?
– Eu apenas sei, Arthur. Há coisas que me são reveladas, mas não todas. Por isso, fiz minha pergunta.
– Ora, eu não sei exatamente...
Dobrei uma perna sobre a outra e pus a mão sobre meu queixo. Esperava que, fazendo posição de pensador, desse oportunidade para ela falar. Entretanto, seus olhos verdes realmente esperavam que eu tivesse algo a dizer.
– Eu não tenho uma resposta. Acho que só falei o que todos dizem. Eu... Bem, realmente, tenho estado cansado. Não fosse para te ver, eu nem teria saído de casa hoje.
– Mas você saiu. E você terá bons motivos para sair de novo, em breve.
A voz dela me fez gargalhar de imediato. Eu perguntei:
– O que é isto? Uma profecia?
– Exatamente – Elisa disse séria, depois com um sorriso leve no canto da boca. Pegou um colar de pingente verde, feito uma gota de seus olhos. Ajoelhou-se diante de mim, pegou a minha mão direita. Com um jeito inocente, pousou o colar sobre a palma e a fechou com delicadeza.
Disse baixinho para mim, como se confessasse algo:
– Eu te dou isto, se você prometer que nunca vai jogar meus discos fora. Esta é a minha única chance de continuar viva.
O aroma de pêssego, com ela assim perto, parecia emanar de seus cabelos. A dança lenta daqueles fios pretos me hipnotizava. A resposta, de forma alguma, poderia ser negativa:
– É claro, Elisa.
– Vocês têm outras formas de viver, mas eu só tenho meus discos...
Fez uma longa pausa. Fixou o olhar em meus olhos por um momento, depois, me deu um abraço. Neste momento, eu podia jurar que ela estava menor que de costume, feito criança adaptada aos braços de um adulto. Apenas fechei os olhos e retribuí o carinho.
Ainda abraçada a mim, ela ondulou sua voz por meus ouvidos:
– ... Lembre-se deste pingente quando se sentir cansado.
Além de um forte "Obrigado!", eu não tive palavras com que prosseguir aquela conversa. Tudo estava, de fato, encerrado. Nós nos despedimos com um caloroso adeus e eu saí pela porta.
Eu nunca mais a veria, nunca mais teria informações a seu respeito, exceto saber que ela viajou para o outro lado do Atlântico, de volta para sua terra natal.
Desci pelas ruas iluminadas, observei as propagandas nos monitores brilhantes que tentavam romper o cair da neve. Tomei um carro para casa, observando tudo passar no mesmo azul de antes, só que, agora, mais escuro.
E, quando cheguei, fui recebido com um abraço forte de minha esposa. Nossa filhota estava a caminho! Uma bela notícia para encerrar aquela noite.
Hoje, eu escrevo isto com o pingente de Elisa Lótus na mão. Uma gota verde num quarto azul.
Expliquei para minha esposa como eu o recebi, mas não dei muitos detalhes. Até porque eu mesmo não sei o que posso contar sem parecer louco. Mas me surpreendi com a emoção de minha amada. Conhecer gente famosa tem suas vantagens – eu disse e ela riu, com a piadinha.
Agora, minha filha está dormindo no bercinho, ao lado da nossa cama. Posso vê la daqui, da mesa da sala. Tão bochechuda! Quando ela estiver grandinha o suficiente para não engolir qualquer coisa, poderá conhecer o pingente.
E eu, quando me perco no cansaço, retorno a este verde talismã para me reencontrar. Retomo a vida, por entre fraldas e uma discografia inteira para desbravar.
Me pergunto quantas Elisas não deve haver por aí, entregando a vida pela arte...
Daqui a algum tempo, voltarei a escrever. Terei de atender ao chamado. Por mim, por nós e por todas as deusas que ainda aguardam por seus pequenos altares de esmeralda.

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