Um Blues Dissonante
- Hélio Silva

- 29 de jul
- 6 min de leitura
Por Hélio Silva, 29/07/2025 às 10:17

Isso teria sido loucura se não tivesse acontecido comigo, com o homem que eu fui, naquele dia chuvoso e frio de novembro. Foi algo muito real para alguém me convencer do contrário. Por isso, larguei essa vida, mas nunca esqueci.
O que aconteceu foi que, mais uma vez, eu estava com uma guitarra na mão e a plateia diante de mim estava no aguardo dos acordes certos. Todo mundo bebia algo, mesmo que aqueles fossem os anos ruins: tempo da Lei Seca, tempo da força da polícia sendo imposta contra a vontade popular de se afogar numa garrafa. É claro que o álcool iria vencer, afinal, a vida é pesada demais para que não haja escapismo. Mas eles não sabiam disso na época. Eles achavam que venceriam. Ou, foi isso o que eu pensei...
Pensei enquanto bebi meu pequeno cantil nos bastidores e enquanto toquei de maneira tensa, as notas escorregando da minha mão e caindo nos lugares certos. Nem eu sabia o que estava fazendo naquele dia. Algo maior que eu se manifestava por meus braços.
Tocava a guitarra como se nunca tivesse precisado aprender, como se ela própria falasse comigo. Mas a maldita ansiedade não me deixava em paz. Ela tinha acordado comigo nos dias anteriores e crescia em mim como a chuva fria lá fora. Por isso eu bebia sem parar, mas isso não exorcizava meus maus espíritos.
A plateia, por seu turno, se comportava bem. Cantava no mesmo ritmo, fazia tremer as madeiras da parede e aquele barulho todo me deixava mais apreensivo. Será que a polícia iria bater ali? Logo eles deveriam chegar investigando o lugar, pegando as bebidas mal disfarçadas e averiguando as bem escondidas. Ninguém sabia no que ia dar aquela noite, mas se refugiava naquele inferninho pelo bem das próprias existências, dos próprios corações. Todos tão palpitantes quanto o meu.
Nervosos por estarem relaxando no meio da fumaça azul que se elevava pelo ambiente, igualando cabeças de meliantes e sujeitos honestos que apenas queriam um descanso após mais um longo dia num mundo mofado que nunca, nunca cheirava a algo melhor.
Meu repertório, eu me lembro como se fosse hoje, seguia esta toada: amor fracassado, lamentos por um mundo cruel. Todavia, neste show, minhas canções seguiram por outro caminho e, mesmo assim, eles me acompanhavam. Aqueles homens e aquelas mulheres, aqueles enganadores e até mesmo os enganados, todos queriam as canções mais obscuras que este carinha aqui podia oferecer, aquelas que representavam o clima da chuva que oprimia corações sob os grossos capotes.
E tudo se modificou no ambiente quando soltei a canção sobre o diabo que me parou na encruzilhada. Eles cantaram junto comigo e bateram na mesa fazendo tremer os copos, fazendo o mundo todo suar numa só cadência.
Assim, a magia se fez, usando nossa própria energia, para surpreender os nossos próprios olhos. Por um instante, algo se despregou de mim, se despregou de todos nós e eu pude ver uma sombra dançando no meio do palco, meio desforme, meio mística.
A sombra seguia o compasso cadenciado, se embrenhava no meio da fumaça dos cigarros, do tilintar de garrafas e do tremor de copos. Ela – posso usar a palavra “ela”!, tenho certeza, agora que recobro aquele momento – se insinuava de forma sinuosa, caia como cai um conhaque sobre uma garganta sedenta de sonhos e de sabores...
Ela dançava sabendo tudo, querendo tudo e ela queria a mim, aos músicos que me acompanhavam, aos espectadores. Queria nos engolir, como engolia a luz baça em suas entranhas de breu.
E, no meio disso, meu senso de realidade se perdeu. Imaginei ter visto os policiais entrarem, se abraçarem aos bandidos. Aos homens de bem. Imaginei que eles cantavam, enquanto puxavam as algemas para me prender, depois do show. Bastaria eu terminar aquela música.
Só mais uma música... e os tiras iriam me matar se me pegassem do lado de fora e eu começava a alucinar com isso e com a banda perdendo o compasso, tocando mais rápido, não, esse não era o ritmo correto...
Utilizei minha cartada para não pôr tudo a perder: lancei um solo para corrigir a rota.
Foi o meu último e meu melhor. A sombra bambeou, perdeu sua força e retornou com a fumaça para os pulmões de todos os presentes, retomando seu lugar nos espaços tristes daqueles corações amaldiçoados.
Minhas notas soavam dissonantes, mas tão malditamente certas que soavam feito a dura língua de um exorcista – mas um exorcista às avessas, do estranho tipo que, pela música, barganhava com o demônio ao invés de expulsá-lo.
Solei em suor e desespero, e a base se manteve; manobrei com a velocidade, os músicos me acompanharam; me embrenhei por vias de escalas tortas, e mesmo assim eles me seguiram; perdi o controle de meus dedos nos braços da guitarra e eles continuaram no meu alcance – o baixo, a bateria e as vozes da plateia.
Naquela noite, fomos todos um só coração angustiado. E, quando a ansiedade já mordia meu peito com toda fúria de seus caninos, novamente eu senti o peso do mundo transformando tudo em uma imutável massa amorfa. Assim, eu fui parando, fui encerrando o solo, sustentando as últimas notas, encerrando o show, dando lugar à chuva de fora e aos capotes molhados.
Abaixei minha cabeça para receber os aplausos e corri para fora, assim que pude. No meu íntimo, eu bem sabia a sentença que me esperava. A imagem dos tiras que me assustara antes, certamente se tornaria realidade. E lá estava!
No beco, pela porta dos fundos, havia uns seis deles. Seria meu fim e eu não teria como me justificar.
Deixei minha guitarra cair e esbocei um “boa noite” que saiu borrado pelas gotas do céu e deformou meu rosto amedrontado.
A lâmpada fraca de fora exibia a porta cerrada ao meu lado e não permitia rostos aparecerem para mim com a clareza que eu precisava para me acalmar. O whiskey do cantil esvaziado começava a bater em minha mente com seus toques sobrenaturais.
Aqueles sujeitos uniformizados não eram policiais, pior: eram os emissários do demônio!
– O que vocês querem de mim?! – minha voz saiu forte formando uma fumaça branca, que foi furada pela chuva assassina. Eles contemplaram isto e nada responderam. Eu apenas pude distinguir um olhar avermelhado aqui e um sorriso dourado ali.
Senti que seria meu fim. Havia distintivos brilhando sob a luz mirrada, eu me sentia confuso, tentando imaginar os próximos passos: prenderiam um desconhecido, jogariam numa cela qualquer, sem família, sem mulher, sem amigos ou conhecidos...
Mas não. Um deles se abaixou, pegou a bolsa com minha guitarra e a devolveu para mim. Risos metálicos rangiam ao meu redor, eu não sabia como reagir. E ele, o mesmo, abriu o bolso esquerdo, tirou um cantil e me deu. Não pude ver seu rosto, sua face de breu engolia a todos os reflexos da lâmpada amarela no espaço apertado.
Meus sentidos se contentaram com o cheiro do destilado e com as poucas palavras que exalavam a ferrugem.
Assim ele me disse:
– Hoje não. Hoje não é seu dia. Você é um homem talentoso. Você me deu a honra de ouvir aquele solo. Eu posso te ajudar a gravar isto para a eternidade. Mas será que consegue sustentar o peso daquelas notas?
Fiquei completamente imóvel. Cada pelo do meu corpo tornou-se rijo feito gelo contra a água que se intensificava.
Percebendo minha covardia, ele me deu passagem e os outros se moveram junto ao mestre. Ninguém tinha rostos, mas todos tinham sorrisos e usavam uniformes da polícia. Eu pude ver com meus próprios olhos! Eram da polícia, mas não eram humanos.
Eu sei o que vi. Vi isto e dei no pé, andando rápido na chuva que batia feito um maldito coturno.
Depois soube que o bar foi pego numa investigação, meia hora depois que eu saí. Até os músicos foram presos, o baterista e o baixista estavam sempre por lá. Foi tudo por água abaixo.
Ler isso no jornal me deu um medo infernal e eu não consegui, não consegui mais, sabe?
Guardei a guitarra, ela está lá no quarto dos fundos da casa de um amigo. Deixei a maldição lá com ele, que é interessado nessas coisas, dizia até que ia gravar um disco, seguindo minhas melodias “diabólicas”. Ele falava rindo, com o violão dele na mão, uma cartola na cabeça. O diabo deve ter achado outro.
E quanto a mim, eu nunca mais visitei o cara. Nunca mais quis saber da guitarra. Arranjei outra coisa, vou à igreja, mas se você me perguntar onde está deus, não sei apontar. Ele existe? Eu não sei, eu não sei. Por isso evito sair à noite.
As pessoas andam por aí hoje em dia, bebendo despreocupadas. Porém, eu fui daquele tempo, não posso me dar a esse luxo. Só de estar falando isso, já é um luxo. Mas te dou um aviso:
Não fique por perto de mim quando a polícia passar.
Não ande comigo quando eu entrar em algum beco.
Não esteja comigo quando meus pés passarem por uma encruzilhada.
Ele está me olhando. Está comigo em todos os lugares, entre os compassos do meu coração, nos riscos da agulha no gramofone da vizinha, em todo lugar onde há luz ele me segue, rastejando às minhas costas.
E quando apago a lâmpada do quarto, seu sorriso toma conta das paredes e vela meu sono. Está lá, o desgraçado, só esperando, para que eu lance a última nota.
Para que eu seja, mais uma vez, o homem que fui. E ele está aqui, é claro. Mas será que ele tem força para me fazer tocar?
Um Blues Dissonante, por Hélio Silva.

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